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NASCER



Cheguei despido, ensanguentado, sem memória das lembranças. Chorei, doeu-me romper a barreira do outro lado para este sem poder trazer o que já sabía. À medida que fui transpondo estádios até alcançar o regresso e fui perdendo no caminho tudo o que conseguira aprender na vida que deixara para trás, uma sensação de estar só apossou-se do meu corpo. Na mente, nada.
Foi tudo tão súbito... Largar o que conhecera numa vida para poder deitar mãos a outra, a esta.
No agora, a que já deixo de novo.

HOMO


Ficou determinado que nascería homem. Marcado, para me recordar. Sem o saber. De quando em vez um estranho formigueiro adormecería o tempo real e eu tería memórias do que não havería vivido. Chamar-lhe-ía sonhos, doutras vezes pesadelos, até invenções da mente. Escrevería sobre tudo e sobre nada e sentiría alívio. Nesses dias eu não sabía que já havía sido o que não era no presente e que a descoberta de todas as vidas só me sería revelada depois que entrasse aqui. Aqui é onde estou. De onde hei-de fazer a viagem. Mas antes terei de passar as chaves a quem me vier a seguir. E que nascerá homo como eu e marcado como eu.

CONTAR



Tempo finito. Tempo de contar a minha aventura. Quando fechar a porta a cor abrandará, lentamente, a profusão dará lugar ao vazio e eu deixarei de ser. Conto a minha história, a minha estadia. Foi agradável, gostei de ter estado cá. Ainda em flor o que senti... Sinto. Breve, entregarei as chaves de todas as portas que dão para portas.

SEBENTA


Deixo os livros conforme os encontrei e como os há-de achar quem vier a seguir e sempre assim ad eternum. Escrevi a minha parte. É esse o peso que hei-de delegar. Ficou tudo registado, a poesia das noites e os épicos da madrugada. A quem o receber, destes pedaços de letras outras prosas reescreverão, achar-se-á único e original. Eu nada direi, nada me contaram quando foi a minha vez. Outros verbos para a sebenta da vida.

AMOR&PAIXÕES


Pleno. Um fogo ardido e espevitado. Na morrinha encontrei o calor saboroso da contemplação, platónico amor, descanso entre lençóis sangrando paixões. Ao amor, não um, mas aqueles que me consagraram homem. Sinto na boca o paladar ora refinado ora cru da pele, das mãos recebendo segredos no acto primeiro da vida. Comi amor, tanto amor. Por isso seguirei alimentado, a viagem é longa.

FORTUNA



Tive uma casa, um mar, sol, direito a todas as estações rasgadas entre janelas que deixei abertas para me embeber. Fui casa e ela foi o meu reino. Criei raízes e mantive-as frescas para agora levar do que restou, sementes bravas que espalho no universo da minha memória. Ganham novo terreno, posso recordar, lembro-me de tudo. Tenho sorte, nada esqueci do que já não é meu.

REFRESCAR


O que a medida do tempo tem de bom é que no avanço das rugas e do peso dos passos rejuvenece a lembrança do já vivido. Tudo se pode repetir, filtrado pelas luzes que distanciam a dor aguda do momento. Sento-me. Assisto, assisto-me. O meu desejo é comando e posso parar, saltar, andar ao contrário aquilo que mais aprouver. Não evito a saudade, não desperdiço o sofrer, refresco-me neles, será também bagagem levada quando partir.

ESTOU VELHO



Estou velho, pesam-me os séculos do homem.Um dia vou ter de ir e até lá a decisão.A quem entregar tudo isto, fiel depositário de mil chaves que abrem portas para outras portas.Assusta...O corajoso perderá tudo pois desvendará.Estou velho. Porém não sábio, apenas mais sabido, destemido.O dia chegará e eu terei de escolher.