THOUSANDS OF FREE BLOGGER TEMPLATES

O BEM E O MAL


Entreguei-me às folhas brancas como a imagem que oferecemos ao espelho pela manhã: Não somos bonitos nem feios, somos o ricochete do que verdadeiramente se entende por ser, estar. O entendimento de nós mesmos é cru quando expomos as fraquezas e não as castigamos, passamos a ver-nos como um outro, medido numa balança que oscila entre o que se gosta e o que se desgosta. É o momento em que descobrimos a separação tão fina e perigosa entre o bem e o mal. O caminho vivido, o caminho por andar - escolhido. E se aos homens foi dada a escolha, só neste tempo finalmente apaziguado, entendi que talvez já tivesse cá estado, regressando para emendar o que antes (não) fizera. Não é assim, cão?

OPUS



Apaixonar e amar, só por si, por mais poético e romântico que seja não é a solução para tudo.
Agarrei-me ao trabalho, à mulher que agora tinha a meu lado, à casa, à experiência que a idade me tinha oferecido e peguei na caneta, no papel. Confiante. Pleno de idéias. Depois já nem tantas a fazerem sentido, só sabía que tinha de escrever. Os dias correram nem mais rápido nem mais atrasados, eu é que me detinha numa perfeição que tentava achar a todo o custo, que cego achava que só podería ser encontrada na sublimação do amor. A mulher olhou-me e uma vez mais perguntou qual a coisa que eu melhor sabía, aquela que não tinha segredos para mim... Um filme claro, nitido, projectou-se na folha vazia. Era a minha vida, os meus temores, os amores claro, o meu filho, o meu amigo imaginário, o cão! Escrevi ao alto Súbita Mente e senti paz por dentro.

O QUE VÊS



Aprender, aprender sempre todos os dias, aprender a dizer adeus e aprender a acenar de novo ligeiro à conquista de outros horizontes, aprender a sacudir o pó das mãos e dos joelhos esfolados e chorar porque dói, aprender a crescer do tamanho do mundo, aprender que ao alcance das mãos está o que se vê. A mulher sem corpo era um corpo de essência, porém materializava-se na frontalidade com que me encarava. Sacudiu-me vigorosamente, tirou-me da muleta do destino traçado, do incompreendido, do vicio da desculpa. Apontou-me a sua imagem ao espelho e pediu que lhe dissesse o que vía. Respondi-lhe a salvação. Abanou a cabeça: O que tu vês é uma mulher, apenas uma mulher. Cheia de pequenos defeitos, de necessidades, de doações, de virtudes, não queiras ver o que não existe ou desiludes-te. E eu apaixonei-me por ela.

PURIFICAÇÃO



Os corpos substituíam-se à velocidade dos lençóis a mergulharem numa escuridão cada vez mais densa, peganhenta, dificil de limpar. Mas essa era também a justificação para mim: Gostar que não gostem de nós para justificar a miserabilidade em que nos encostamos no canto da vida. Uma noite, um corpo de mulher sem mulher ergueu-se da minha cama e ripostou por eu querer competir na desgraça. Acendeu-se uma vela, depois um lume forte, depois uma mulher renasceu por mim, eu por ela. Mostrei-lhe a minha poesia mas ela não quis saber, que dessa também ela escrevía. Pediu-me antes que lhe mostrasse o homem. E um incêndio limpou todo o quarto, todos os meus medos e a minha pena. Distintamente soube que já houvera sido, uma labareda clara revelou-me a verdade do meu regresso a uma vida que se repetía. Tempo de portas, tempo de não cometer os mesmos erros nas escolhas.

PASSAGENS



O armário vazio, a porta que se bate, as lágrimas que falam em vez das palavras que não são cruéis o suficiente para que o outro sinta quanta dor se leva na bagagem. Deixei-a saír, pareceu que não era importante. Já nada era diferente que me surpreendesse e despertasse do limbo em que eu próprio me enleava. Sabía-me bem sentir pena de mim, um incompreendido que nunca tivera respostas. A cama passou a ser um aluguer de corpos, uma coberta que me aconchegava quando tinha frio, o cheiro de suado a lembrar o tempero de vida. Eu era uma porta: deixava-me atravessar, nunca aberta, nunca fechada.

FRAGMENTOS



Aquilo que adoece o corpo já primeiro deixou enferma a alma. Sem alento, sem perguntas para a missão que eu achava não ter mais razão de existir, eu deixava de existir. O meu mundo parecía estar completo, nada da minha intervenção podería dignificá-lo, transformá-lo, ensinar que de mim houvera herança. Aos poucos desliguei-me, afastei-me do continente e tornei-me ilha, barbarizei-me pelas noites de vicio, procurava a dor para me castigar como incapaz, procurava semelhantes para justificar a minha cobardia de viver. A mulher ao meu lado chamava-me, pedía, e um dia disse-me ter perdido a voz. Não me importei, não implorei, a sua partida era a certeza de que eu nada merecía.

ESBOROAR


Naquela manhã não tive vontade de me levantar, correr os reposteiros e acordar a mulher que eu amava com um beijo. Não tive vontade de escrever nem de perguntar-me o que eu houvera sido antes de estar deitado como um homem que toda a vida se inquietara com a ausência de respostas que lhe trouxessem o ponto final a todas as questões impostas por si. Não tive saudades do meu amigo imaginário nem dos lugares que conhecera nas viagens pelo mundo fora. Não vi rostos do passado nem tive vontade de ver a minha figura ao espelho. Talvez não houvesse nada mais para eu fazer. Talvez eu já tivesse descoberto tudo no mundo e pela vida e a minha passagem estivesse a caducar a sua validade. Naquela manhã senti-me mais só e de uma forma tão solitariamente diferente que achei que tinha morrido e por isso não era mais capaz de me levantar.

LIBERTAR


É absurdo o que damos de nós a quem amamos sem nos aperceber, sem medirmos a extensão de pele e alma que entregamos em noites incontadas, instalados numa permanente preocupação de valia, nutrição, zelo, contemplação. Por vezes tanta contemplação que cegamos e perdemos a bússola do tempo. Os filhos crescem, precisam do mesmo espaço que nós já reinvidicámos e rapidamente esquecemos nessa alternância de papéis que a próxima dádiva é entregá-los a eles mesmos. Descobri-o num dia, num único dia em que lhe falei de coisas que desde a infância me tentava recordar e de alguma forma o tempo havía-las desordenado, confundindo a minha realidade com a realidade geral. Foi súbita mente que descobri que o meu filho não pertencía a estas divagações. Crescera tão depressa... Agora procurava as dele mas não me podía contar. Sei agora que as chaves que abrem as portas que dão para a porta não lhe poderão ser entregues, não é a ele que compete carregar esse fardo.