DOIS MUNDOS
O BEM E O MAL
OPUS
O QUE VÊS
PURIFICAÇÃO
Os corpos substituíam-se à velocidade dos lençóis a mergulharem numa escuridão cada vez mais densa, peganhenta, dificil de limpar. Mas essa era também a justificação para mim: Gostar que não gostem de nós para justificar a miserabilidade em que nos encostamos no canto da vida. Uma noite, um corpo de mulher sem mulher ergueu-se da minha cama e ripostou por eu querer competir na desgraça. Acendeu-se uma vela, depois um lume forte, depois uma mulher renasceu por mim, eu por ela. Mostrei-lhe a minha poesia mas ela não quis saber, que dessa também ela escrevía. Pediu-me antes que lhe mostrasse o homem. E um incêndio limpou todo o quarto, todos os meus medos e a minha pena. Distintamente soube que já houvera sido, uma labareda clara revelou-me a verdade do meu regresso a uma vida que se repetía. Tempo de portas, tempo de não cometer os mesmos erros nas escolhas.
PASSAGENS
O armário vazio, a porta que se bate, as lágrimas que falam em vez das palavras que não são cruéis o suficiente para que o outro sinta quanta dor se leva na bagagem. Deixei-a saír, pareceu que não era importante. Já nada era diferente que me surpreendesse e despertasse do limbo em que eu próprio me enleava. Sabía-me bem sentir pena de mim, um incompreendido que nunca tivera respostas. A cama passou a ser um aluguer de corpos, uma coberta que me aconchegava quando tinha frio, o cheiro de suado a lembrar o tempero de vida. Eu era uma porta: deixava-me atravessar, nunca aberta, nunca fechada.
FRAGMENTOS
Aquilo que adoece o corpo já primeiro deixou enferma a alma. Sem alento, sem perguntas para a missão que eu achava não ter mais razão de existir, eu deixava de existir. O meu mundo parecía estar completo, nada da minha intervenção podería dignificá-lo, transformá-lo, ensinar que de mim houvera herança. Aos poucos desliguei-me, afastei-me do continente e tornei-me ilha, barbarizei-me pelas noites de vicio, procurava a dor para me castigar como incapaz, procurava semelhantes para justificar a minha cobardia de viver. A mulher ao meu lado chamava-me, pedía, e um dia disse-me ter perdido a voz. Não me importei, não implorei, a sua partida era a certeza de que eu nada merecía.
ESBOROAR
LIBERTAR
TRÍPTICO
LEGADOS DA MEMÓRIA
O CICLO
Há coisas que não se esquecem, os anos e as vidas e os renasceres voltam e vão e a memória desse momento fica gravada como um canivete na madeira. Agora era a minha vez de ser em vez de chamar, a vez de ter respostas ao invés de formular dúvidas. Como é que se faz para se ser pai? Onde é que o meu pai tinha aprendido a ser? Tantas perguntas... Como um raio que me abriu a meio tive a imagem da regressão até ao dia em que abri os olhos e me perguntei quem eram aqueles que me sorríam para o berço. Adivinhava como sería o olhar daquele que me tinha sido destinado como filho e na tentativa de achar certezas percorri as galerias da mente, devagar, ao ritmo do ventre da mulher que amava crescer como o fermento da imaginação.
GEOMETRIAS
SINFONIAS
ENAMORAR
CURATIVOS
DESPEDIDAS
O nosso sofrer é sempre maior que o dos outros porque é do tamanho de nós mesmos. Mas à custa de nos guardarmos nessa capa que nos vai envolvendo em camadas que enrijecem, perdemos a visão e uma dormência tolda-nos os sentidos e acabamos por fabricar da nossa seiva um casulo que nos asfixia. Sem saber de mim perdi a medida dos que me estavam próximos e foi súbita e tardiamente que entendi que o meu pai partía. Não se recupera o que já passou mas recuperamos de nós as medidas do nosso sofrer e o que parecía desesperado tornou-se uma vaidade que passei a esconder. Tomei a mão daquele homem entre as minhas como ele fizera tantas vezes comigo, senti-o ir, vi-lhe nos olhos os mesmos olhos do cão quando eu havía partido anos antes. Não tive a fortuna de aqui, onde agora estou, me encontrar com ele. Ele chegou no seu tempo e entregou a chave das portas para a porta que escolheu. Mas o cão falou-me dele e disse-me que ía feliz no voltar.
(DES)AMORES
ARA
O PASSADO NO FUTURO
MUDANÇAS
COBARDIAS
IDENTIDADE
AO CHEGAR
SAUDADES
O CAMINHO DA VIDA
DE DEGRAU EM DEGRAU
PARTIR
A TRISTEZA
Naquele dia ruiu tudo, o meu mundo despedaçou-se até ao pó, as letras, as emoções, até mesmo o laço da amizade, tudo se desfez. A minha princesa e o meu maior amigo uníam-se para além do nosso triângulo, beijavam-se e prometíam em juras solenes o que o homem não pode desatar. Olhei-a e quase tive a coragem de lhe pedir para não ir para outro, olhei-o e vi como era ser feliz.Naquele dia experimentei na boca um gosto que me parecía já conhecer, e no entanto, perguntava-me de onde, que veneno igual podería ter o mesmo paladar inesquecível para o recordar tão fortemente. Sinto-o. Sinto-o agora e aqui, tão fortemente condimentado. Chama-se tristeza e sei tão bem ao que sabe. Porque só agora tenho a capacidade de saber que devería ter feito a minha vida, nesse mesmo dia, de outra forma e tudo sería diferente no seu replicar.
AS PALAVRAS QUE NÃO SE CONTAM
BORBULHAS
A PRINCESA
CÃO
SIMPATIAS
Desconhecemos porque sentimos empatia por alguém. Simpatia. Sincronicidades. Paralelos, semelhanças. Havía no meu novo amigo com um segredo igual ao meu uma ligação que não conseguíamos descobrir de onde provinha: era tudo tão certo, tão experimentado como se fossemos nascidos do mesmo ventre. Naquele tempo estava-nos vedada a memória do que já havíamos sido e só agora eu - porque ele ainda não chegou a esta porta - sorrío por saber de onde éramos, de onde havíamos brincado juntos... Partilhámos o nosso segredo do companheiro imaginário e dos quatro fizémos uma força única e inseparável. Até ao dia de eu partir e abrir a porta para receber as chaves que abrem outras portas. Vejo-o, está cansado, mas ainda não é o seu tempo de receber as chaves. Mais um pouco, Companheiro...
EU E OS OUTROS
APRENDER
OLHOS ABERTOS
NASCER
HOMO
CONTAR
SEBENTA
AMOR&PAIXÕES
Pleno. Um fogo ardido e espevitado. Na morrinha encontrei o calor saboroso da contemplação, platónico amor, descanso entre lençóis sangrando paixões. Ao amor, não um, mas aqueles que me consagraram homem. Sinto na boca o paladar ora refinado ora cru da pele, das mãos recebendo segredos no acto primeiro da vida. Comi amor, tanto amor. Por isso seguirei alimentado, a viagem é longa.