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BORBULHAS


Não fui diferente de qualquer outro adolescente. Tive crises existenciais, sonhos molhados, borbulhas e alguma rebeldia. Mas esta era um mar interior, as perguntas continuavam a fazer-me comichão por dentro. Descobri o feminino, apaixonei-me por esse universo misterioso em que a carne parece consumir-nos como idéia única e interessante. Fora isso a dúvida constante: Que quería eu para a minha vida? Sentía-me liberto com o meu amigo imaginário, tinha uma confiança plena no meu amigo verdadeiro, e a Princesa parecía tão mais bela quanto mais inacessível aos meus desejos de rapaz. Inábil para lidar com este crescer fermentado de outras vidas, encontrei algum sossego na escrita. Encontrei-me e soube o que quería ser quando fosse homem feito.

A PRINCESA


Pouco tempo depois ela apareceu na minha vida, traçou o meu caminho, fez-me descobrir a tranquilidade para o desconforto de tantas perguntas. Por essa altura teríamos uns dez anos... Se é que podemos medir o tempo dessa forma, naqueles dias assim o julgava, assim sentía tudo lento e moroso. Demorava para crescer e tornar-me homem para beijar aquela menina, demorava para entender o que a poesia faz na boca quando se quer dizer amor. Ela era tudo o que eu não conhecía. Ou pensava desconhecer, no fundo estava guardado para este momento em que estou e vos conto sobre as chaves que abrem a porta para outras portas.

CÃO


Embora tivesse uma sede inesgotável de saber coisas, a escola aborrecía-me, achava uma perda de tempo, distraía-me com tudo e com nada e mantinha um contínuo diálogo com o meu imaginário. A timidez também não facilitava as relações e para além do meu amigo pouco falava com os outros. Fazía muitas perguntas a mim próprio, coisas sem explicação, muitas delas deixavam-me a matutar por horas, os porquês, porquê assim e não de outra forma, porquê os nomes das coisas, porquê o frio quando há medo e o calor quando se brinca. Um dia ao regressar da escola um cão seguiu-me. Olhei-o nos olhos meigos, ele esticou a pata na minha direcção. Senti que falava comigo embora não entendesse tudo o que me dizía mas sabía que precisava dele junto de mim para me ensinar, para eu ter respostas para muitas das minhas perguntas. Dava-me segurança igual à que tinha quando segurava a mão do meu pai... Senta Cão, senta, ouve o resto...

SIMPATIAS



Desconhecemos porque sentimos empatia por alguém. Simpatia. Sincronicidades. Paralelos, semelhanças. Havía no meu novo amigo com um segredo igual ao meu uma ligação que não conseguíamos descobrir de onde provinha: era tudo tão certo, tão experimentado como se fossemos nascidos do mesmo ventre. Naquele tempo estava-nos vedada a memória do que já havíamos sido e só agora eu - porque ele ainda não chegou a esta porta - sorrío por saber de onde éramos, de onde havíamos brincado juntos... Partilhámos o nosso segredo do companheiro imaginário e dos quatro fizémos uma força única e inseparável. Até ao dia de eu partir e abrir a porta para receber as chaves que abrem outras portas. Vejo-o, está cansado, mas ainda não é o seu tempo de receber as chaves. Mais um pouco, Companheiro...

EU E OS OUTROS



Tive alguma dificuldade em fazer amizades, relacionar-me, nos recreios ficava a um canto a observar os outros, a escutar os sons, as gargalhadas das brincadeiras. Em casa inventei um amigo para me acompanhar e conversar. Éramos inseparáveis. Mesmo quando não estávamos de acordo e nos zangávamos nunca fui dormir sem ter feito as pazes com ele. Sentía-me feliz por ter este segredo comigo, tão feliz que nem sabía explicá-lo e mesmo quando os meus pais me chamavam a atenção para o bizarro de se conversar com ninguém eu desistía dele. Acompanhámo-nos durante anos. E um dia descobri alguém que também tinha um segredo igual ao meu.

APRENDER


Chegou o dia de me levarem à escola. Para aprender, disseram-me. Por essa altura o que recordava eram manchas nebulosas e quando falava do que me incomodava punham-me a mão sobre a cabeça, afagavam-me o cabelo gentilmente e referíam que tinham sido sonhos, pesadelos, nada de verdadeiro. Ainda assim, duvidei. Prendía-me a cada fragmento e fazía força para me lembrar. Tudo em vão. No dia em que me levaram à escola e me sentei no meio dos meus colegas foi o dia em que perdi definitivamente a ligação com o que tinha sido. Eles já não me sorríam. O mesmo dom inato de esponja, tudo limpo de uma memória cheia que houveramos tido, prontos a receber, assim éramos. Tudo de novo, tudo analfabeto não só de letras e números mas da própria vida em si.

OLHOS ABERTOS



Recordo-me que mal tive consciência dos meus olhos abertos uma só pergunta se me colocava sobre quem era o casal que me sorría. Rápido me apercebi que seríam os meus pais, àquele tempo, perfeitos desconhecidos. Com o passar dos anos a medida das lembranças e do conhecimento que tinha trazido esvaíu-se por completo, tábua rasa de mim mesmo, tive que voltar a aprender tudo de novo. Incluíndo os que passaram a ser meus pais e que amei profundamente até nos separarmos. Havía toda uma multidão que passava por mim e parecía não me reconhecer... Só uma ou outra criança me sorríam, ainda tinham memória do que havíamos sido antes.