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DOIS MUNDOS



O homem é constituído por dois mundos: o mundo que reside na sua cabeça e o outro, o que o rodeia, aquele que interage consigo, nas suas funções, no seu evoluír até à chegada da meta. Depois do livro concluído, publicado, aceite, vendido subi ao sotão do meu mundo e por lá fiquei.Achara durante o tempo em que escrevera que a felicidade sería minha quando o livro saísse, mas a maior amargura apanhou-me desprevenido e uma sensação de oco não deixava de me encher até me faltar o ar. Afinal o que é que o mundo da cabeça tinha para me oferecer?

O BEM E O MAL


Entreguei-me às folhas brancas como a imagem que oferecemos ao espelho pela manhã: Não somos bonitos nem feios, somos o ricochete do que verdadeiramente se entende por ser, estar. O entendimento de nós mesmos é cru quando expomos as fraquezas e não as castigamos, passamos a ver-nos como um outro, medido numa balança que oscila entre o que se gosta e o que se desgosta. É o momento em que descobrimos a separação tão fina e perigosa entre o bem e o mal. O caminho vivido, o caminho por andar - escolhido. E se aos homens foi dada a escolha, só neste tempo finalmente apaziguado, entendi que talvez já tivesse cá estado, regressando para emendar o que antes (não) fizera. Não é assim, cão?

OPUS



Apaixonar e amar, só por si, por mais poético e romântico que seja não é a solução para tudo.
Agarrei-me ao trabalho, à mulher que agora tinha a meu lado, à casa, à experiência que a idade me tinha oferecido e peguei na caneta, no papel. Confiante. Pleno de idéias. Depois já nem tantas a fazerem sentido, só sabía que tinha de escrever. Os dias correram nem mais rápido nem mais atrasados, eu é que me detinha numa perfeição que tentava achar a todo o custo, que cego achava que só podería ser encontrada na sublimação do amor. A mulher olhou-me e uma vez mais perguntou qual a coisa que eu melhor sabía, aquela que não tinha segredos para mim... Um filme claro, nitido, projectou-se na folha vazia. Era a minha vida, os meus temores, os amores claro, o meu filho, o meu amigo imaginário, o cão! Escrevi ao alto Súbita Mente e senti paz por dentro.

O QUE VÊS



Aprender, aprender sempre todos os dias, aprender a dizer adeus e aprender a acenar de novo ligeiro à conquista de outros horizontes, aprender a sacudir o pó das mãos e dos joelhos esfolados e chorar porque dói, aprender a crescer do tamanho do mundo, aprender que ao alcance das mãos está o que se vê. A mulher sem corpo era um corpo de essência, porém materializava-se na frontalidade com que me encarava. Sacudiu-me vigorosamente, tirou-me da muleta do destino traçado, do incompreendido, do vicio da desculpa. Apontou-me a sua imagem ao espelho e pediu que lhe dissesse o que vía. Respondi-lhe a salvação. Abanou a cabeça: O que tu vês é uma mulher, apenas uma mulher. Cheia de pequenos defeitos, de necessidades, de doações, de virtudes, não queiras ver o que não existe ou desiludes-te. E eu apaixonei-me por ela.

PURIFICAÇÃO



Os corpos substituíam-se à velocidade dos lençóis a mergulharem numa escuridão cada vez mais densa, peganhenta, dificil de limpar. Mas essa era também a justificação para mim: Gostar que não gostem de nós para justificar a miserabilidade em que nos encostamos no canto da vida. Uma noite, um corpo de mulher sem mulher ergueu-se da minha cama e ripostou por eu querer competir na desgraça. Acendeu-se uma vela, depois um lume forte, depois uma mulher renasceu por mim, eu por ela. Mostrei-lhe a minha poesia mas ela não quis saber, que dessa também ela escrevía. Pediu-me antes que lhe mostrasse o homem. E um incêndio limpou todo o quarto, todos os meus medos e a minha pena. Distintamente soube que já houvera sido, uma labareda clara revelou-me a verdade do meu regresso a uma vida que se repetía. Tempo de portas, tempo de não cometer os mesmos erros nas escolhas.

PASSAGENS



O armário vazio, a porta que se bate, as lágrimas que falam em vez das palavras que não são cruéis o suficiente para que o outro sinta quanta dor se leva na bagagem. Deixei-a saír, pareceu que não era importante. Já nada era diferente que me surpreendesse e despertasse do limbo em que eu próprio me enleava. Sabía-me bem sentir pena de mim, um incompreendido que nunca tivera respostas. A cama passou a ser um aluguer de corpos, uma coberta que me aconchegava quando tinha frio, o cheiro de suado a lembrar o tempero de vida. Eu era uma porta: deixava-me atravessar, nunca aberta, nunca fechada.

FRAGMENTOS



Aquilo que adoece o corpo já primeiro deixou enferma a alma. Sem alento, sem perguntas para a missão que eu achava não ter mais razão de existir, eu deixava de existir. O meu mundo parecía estar completo, nada da minha intervenção podería dignificá-lo, transformá-lo, ensinar que de mim houvera herança. Aos poucos desliguei-me, afastei-me do continente e tornei-me ilha, barbarizei-me pelas noites de vicio, procurava a dor para me castigar como incapaz, procurava semelhantes para justificar a minha cobardia de viver. A mulher ao meu lado chamava-me, pedía, e um dia disse-me ter perdido a voz. Não me importei, não implorei, a sua partida era a certeza de que eu nada merecía.

ESBOROAR


Naquela manhã não tive vontade de me levantar, correr os reposteiros e acordar a mulher que eu amava com um beijo. Não tive vontade de escrever nem de perguntar-me o que eu houvera sido antes de estar deitado como um homem que toda a vida se inquietara com a ausência de respostas que lhe trouxessem o ponto final a todas as questões impostas por si. Não tive saudades do meu amigo imaginário nem dos lugares que conhecera nas viagens pelo mundo fora. Não vi rostos do passado nem tive vontade de ver a minha figura ao espelho. Talvez não houvesse nada mais para eu fazer. Talvez eu já tivesse descoberto tudo no mundo e pela vida e a minha passagem estivesse a caducar a sua validade. Naquela manhã senti-me mais só e de uma forma tão solitariamente diferente que achei que tinha morrido e por isso não era mais capaz de me levantar.

LIBERTAR


É absurdo o que damos de nós a quem amamos sem nos aperceber, sem medirmos a extensão de pele e alma que entregamos em noites incontadas, instalados numa permanente preocupação de valia, nutrição, zelo, contemplação. Por vezes tanta contemplação que cegamos e perdemos a bússola do tempo. Os filhos crescem, precisam do mesmo espaço que nós já reinvidicámos e rapidamente esquecemos nessa alternância de papéis que a próxima dádiva é entregá-los a eles mesmos. Descobri-o num dia, num único dia em que lhe falei de coisas que desde a infância me tentava recordar e de alguma forma o tempo havía-las desordenado, confundindo a minha realidade com a realidade geral. Foi súbita mente que descobri que o meu filho não pertencía a estas divagações. Crescera tão depressa... Agora procurava as dele mas não me podía contar. Sei agora que as chaves que abrem as portas que dão para a porta não lhe poderão ser entregues, não é a ele que compete carregar esse fardo.

TRÍPTICO


Plantar uma árvore, escrever um livro, ter um filho. Da casa fiz o império que precisava para me sentir ligado à terra, ser homem de um País. Talvez não tenha escrito o melhor livro, mas fi-lo com aquilo que sabía e com o sentimento justo de quem presta homenagem a quem tanto me ajudara desde a infância. O meu amigo secreto foi a mão que me guiou ao longo de muitas páginas e onde voltei a fazer os passos que caminharamos juntos. Mas foi também a descoberta de que o meu filho havía sido esse amigo imaginário. Agora, sentir-lhe a mão para além das minhas invenções nas noites de trovoada em que me socorría dele para tapar os medos, era ter a responsabilidade de lhe apresentar o mundo, contar-lhe que de quando em vez lembrava-me de coisas que parecía não ter vivido como se me sentisse espectador de um peça em que sabía o enredo mas esperava poder alterar o desfecho. E ele entendía-me, olhava-me de olhos muito abertos e entendía-me.

LEGADOS DA MEMÓRIA



O nosso legado é um liquido que tentamos que se embeba em quem vem a seguir. Queremos desaguar de nós todos os rios e mares que nos correm nas veias, no pensamento e na justificação de quem somos. Fazemo-nos semi-deuses nessa criação do novo oceano e esperamos que um dia ele faça o mesmo. Esta projecção mais não é do que relembrar outras vivências, uma espécie de tatuagem invisivel que cremos quem virá no depois, terá como marca de nascença. Nada mais errado... Mas nesse tempo, nesse espaço, estava-me vedada a memória para esses planaltos e quanto mais os anos passavam mais dura e impermeável se tornava a capacidade de lembrar o que já tinha sido. De quando em vez uns clarões trazíam-me imagens que não entendía, mas ao olhar o meu filho justificava-me para a sua semelhança com o que eu havía experimentado na infância e sossegava o meu coração dizendo-me baixinho és assim porque vieste de mim...

O CICLO



Há coisas que não se esquecem, os anos e as vidas e os renasceres voltam e vão e a memória desse momento fica gravada como um canivete na madeira. Agora era a minha vez de ser em vez de chamar, a vez de ter respostas ao invés de formular dúvidas. Como é que se faz para se ser pai? Onde é que o meu pai tinha aprendido a ser? Tantas perguntas... Como um raio que me abriu a meio tive a imagem da regressão até ao dia em que abri os olhos e me perguntei quem eram aqueles que me sorríam para o berço. Adivinhava como sería o olhar daquele que me tinha sido destinado como filho e na tentativa de achar certezas percorri as galerias da mente, devagar, ao ritmo do ventre da mulher que amava crescer como o fermento da imaginação.

GEOMETRIAS



Tudo. Foi quanto entreguei a este amor e tanto igual assim recebi. Uma construção vagarosa, sólida, plena de decisões e de desejos. Pela primeira vez não tive hesitações, não me calei a um canto nem fiz perguntas sobre o que continuadamente devería lembrar e não conseguía. Pelo contrário, a resposta era este amor por descobrir que me entravava a memória. A poesia voltou, mas o tom doloroso e fechado deu lugar a paisagens calmas em que a personagem unía as mãos às da sua musa. Descobri que os textos jornalisticos me trazíam um sabor tão requintado quanto a vivência experimentada dos dias a correrem sem prazos nem idade. Fui promovido. Mas a tarefa mais árdua estava para chegar.

SINFONIAS


A descoberta do mundo novo não é feita só por mares nem por terra que se abre a golpes de faca e tão pouco nos ares que trazem a trovoada. Esse achamento começa em nós mesmos, cá por dentro, num sitio escuro, recôndito e bem pequenino. Como é que se faz para chegar lá? Não sei. Mil vidas terei de passar e no entanto nada posso garantir de que tenha aprendido a chegar a esse local tão especial. Mas sei que apaixonar-me, sentir amor pôs-me directamente nesse mundo novo adormecido à espera de mim. Ou dela, de nós. A partir daí tudo foi diferente. Não é mentira que tudo se dimensiona, acresce, se perfuma, se enche de sons mágicos regidos por um maestro afinado a dois tons. Inesquecível. Se fechar os olhos, agora mesmo e aqui ainda ouço os acordes, ainda sei o que se sente quando se é feliz.

ENAMORAR



Não foi porque o coração ainda estava fresco da dor e permeável ao que chegasse. Nem foi porque de alguma forma o amor da menina-mulher merecía o luto terminado. Também não foi por causa de sexo, mulheres, companhia até ao pequeno-almoço. Nem a solidão pura, aquela de canto que nos encosta acocorados. Ou tão pouco o querer debater invisibilidades por Dulcineias imaginadas nas folhas que escrevía... Ou ser filho sem pai que quisesse ser pai com filho. Ou distraído o amor me agarrasse. Um amor grande e novo e no entanto tão tranquilo e apaziguador que sarasse as dúvidas, os receios, a fuga. Não, não foi por nada disto que me apaixonei por aquela mulher que apareceu... Tudo isto disse-o para mim, naqueles dias em que achava que era importante haver uma resposta para cada pergunta. E é, sem dúvida. Mas aqui, de onde vos falo, asseguro-vos que o principal é haver sempre perguntas a fazer.

CURATIVOS




Naquele tempo partir, ficar eram situações tão definidas e claras quanto o sol nascer todos os dias para suceder ao reinado das noites. Essa dor funda que ardía no peito não era semelhante a nenhuma outra. Talvez por isso, tentemos arrepiar o inevitável recorrendo a todas as lembranças que nos enchem a essência do que somos. A alma? Ou as almas do que se é? Dei comigo a espevitar recordações que julgara não ter, a descobrir significados para o que me parecera abstracto e achando-lhes conforto, entreguei a minha companhia a uma solidão nova, cheia de emoções, de cheiros e paladares. O peito que queimava aliviava-se quando partilhado na escrita, nas palavras trocadas com a minha mãe, no tocar os objectos que me havíam sido entregues na herança, na reencarnação de meu pai na figura do meu amigo invisivel e inventado que trouxera da infância e que houvera guardado no armário por vergonha. O que arde não cura, mas ajuda a suportar dores.

DESPEDIDAS


O nosso sofrer é sempre maior que o dos outros porque é do tamanho de nós mesmos. Mas à custa de nos guardarmos nessa capa que nos vai envolvendo em camadas que enrijecem, perdemos a visão e uma dormência tolda-nos os sentidos e acabamos por fabricar da nossa seiva um casulo que nos asfixia. Sem saber de mim perdi a medida dos que me estavam próximos e foi súbita e tardiamente que entendi que o meu pai partía. Não se recupera o que já passou mas recuperamos de nós as medidas do nosso sofrer e o que parecía desesperado tornou-se uma vaidade que passei a esconder. Tomei a mão daquele homem entre as minhas como ele fizera tantas vezes comigo, senti-o ir, vi-lhe nos olhos os mesmos olhos do cão quando eu havía partido anos antes. Não tive a fortuna de aqui, onde agora estou, me encontrar com ele. Ele chegou no seu tempo e entregou a chave das portas para a porta que escolheu. Mas o cão falou-me dele e disse-me que ía feliz no voltar.

(DES)AMORES



Não me orgulho deste pedaço da minha vida. Maltratei o amor, os que me queríam bem, prostituí o meu coração sempre que poude e sempre a tentar achar-lhe novas maneiras na humilhação de o ignorar. Nada me satisfazía, nada era bom ou suficientemente mau para eu lhe notar a diferença do que sentía e despertar desta indignidade. Achei-me imortal por já nada me tocar. Achei-me imortal porque escrevía furiosamente sobre emoções que não sentía. Tornei-me o rato do meu próprio labirinto, observador da minha insanidade. Subitamente...

ARA


Os grandes projectos de vida não são os que se realizam. Os encantos desses rasgos de desejo encontram-se no permanente sonho em que se vai acrescentando um pormenor, retirando excessos, aprimorando detalhes. Esse é o motor mais bem lubrificado da essência da vida. Por isso, quando procurei o que deixara uns quantos anos atrás, no amor que tão bem guardara para oferecer àquela menina que se tornara mulher-mãe, soube não com as certezas que agora tenho, mas as daquele tempo, que o meu projecto era manter lembrado o que fora e não o tentar consumar. Caí numa tristeza profunda pela descoberta e amaldiçoei a ela, a mim, ao meu grande amigo que se tornara o seu companheiro, a todas as minhas hesitações e silêncios, a todas as vezes em que lhe quis confessar e não fui capaz, à minha partida, ao meu regresso, a minha infelicidade tão grandiosa e ao mesmo tempo tão bela. Mas deixei que as lágrimas se tornassem lentes de aumentar para ver tudo com mais limpidez e concluí que o meu sonho era ter tido um amor tão enorme que extravazou num altar que fiz à recordação daquela menina.

O PASSADO NO FUTURO




Não só onde agora estou a porta dá para outras portas. Também naquele tempo se ensaia o que virá depois; apenas não o sabemos e estranhamos. E entranhamos na memória como se um destino se cozesse à nossa existência levando-nos a direito pelo sinuoso das linhas da coincidência. Acertei os meus passos pelas minhas raízes e se acalmei a minha vida, uma outra, independente da razão se descompassou. Ao reencontrar a poética trouxe à luz do dia tudo o que sentira por aquela menina que deixara no passado e o coração, maltrapilho da memória e das juras, mendigou a emoção do que sentira. Faltava-me o amor para ter casa. Mas não um qualquer de um outro novo, aquele, sim aquele que eu tivera escondido e que agora decidido quería gritar ao universo. Mas as portas por vezes acertam-nos no rosto... especialmente as que fechámos no passado.

MUDANÇAS




A saturação do olhar critico foi a alavanca para a mudança. Corporeamente. A do sentir há muito se havía deslocado para uma caverna, amachucada pelo escuro do subconsciente anestesiado pela rotina e pelo comezinho redutor do ser humano. Romper amarras, diría o homem do mar, mas as minhas rasgadas pelo peso e força da embarcação arrastaram a âncora para um fundo lodoso que não prendía. A minha casa nova, independente, eu senhor de mim no comando da minha vida não tinha mão na minha insegurança e constante angústia da pergunta: De que devo eu lembrar que não recordo? Ao arrumar caixas no meu novo castelo achei as velhas poesias da adolescência e tudo se aquietou a meu redor.

COBARDIAS


A insustentabilidade da carne da vida é um beco. Por mais poético que se seja é preciso o vil metal para se sobreviver e para criar espaço para as coisas que de facto se gosta. Apertado contra esta parede foi inevitável tornar-me trabalhador assalariado e contrafeito. A minha escrita assemelhou-se muito a uma cruz carregada, pouco tempo para a fábrica dos sonhos e quanto mais independência ganhava mais me prostituía ao adiamento do que realmente gostava de fazer, uma permanente desculpa para a falta de coragem. De quando em vez, rasgos de outras memórias, iluminações que me deixavam a tremer pela faísca de não saber o que fazer-lhes. É duro sabermos o que não conseguimos recordar.

IDENTIDADE





É estranho estarmos rodeados de um ambiente que conhecemos mas que de alguma forma parece não se ajustar às nossas necessidades. Como uma roupa demasiado folgada ou que tenha encolhido por termos crescido. A casa de meus pais significava a protecção, o ninho, mas também a corrente que me prendía a hábitos dos quais perdera a noção. Alimentar, dormir, sorrir perante outros parecíam-me conceitos abstractos que esquecera enquanto vivera sózinho. Todo o ritual da sociedade me escravizava e me tirava a identidade que eu buscava na escrita. Pedíam-me responsabilidade, um emprego das 9h às 5h, familia, herdeiros e eu só quería saber porque me sentía sempre um perdedor sem saber do quê. E quanto mais pensava menos me lembrava.

AO CHEGAR


Regressar significa voltar ao ponto de partida. Ou não. Na verdade, regressar é um conceito matemático e não se adapta à vivência; Na verdade, eu não sabía disso e tomei como lógico o convencimento de que ao retornar a casa de meus pais -e minha- encontraría tudo como deixara. Tudo, menos eu, mais velho, mais maduro, mais conhecedor da vida. Foi exactamente nesse chegar que me apercebi com surpresa, com tristeza, com pesar que essa linha matemática a que nos agarramos para tomar o caminho de casa vai dar a um novelo que se embaraçou na ausência.
Todos os pormenores que reavivei na memória dos sentidos e me deixaram feliz pelo tempo da viagem tinham permanecido intactos, mas apenas na forma como eu os tinha adquirido e guardado. A realidade era bem outra: Os meus pais tinham envelhecido, a casa tinha uma disposição diferente e o meu cão partira já à procura das suas portas (Não foi, cão?). A rapariga por quem permanecera apaixonado platonicamente era agora uma mãe e o meu melhor amigo um homem que esquecera os sonhos.

SAUDADES


Armazenamos informações nos mesmos recipientes da dor, emoção, medo, alegria. Atiramos com tudo cá para dentro e deixamos processar ao ritmo da necessidade do uso. Por isso quando a saudade chamou achei-me incapaz de saber o que era. Naquele tempo, claro. A dor no peito, o regurgitar contínuo de sons e paladares, uma inevitável comparação entre a casa deixada e a vivência ao tempo. Que perdera eu que me deixava tão angustiado e perdido da realidade e que me dava conforto na pouca de tristeza que por vezes me inundava? Tentava lembrar-me à força de coisas que não experimentara. Achava eu, claro. Que o caminho feito já havía sido palmilhado, noutro tempo, noutras léguas. Soberana, a memória suspirou saudades e regressei a casa, contente como me sentira em menino.

O CAMINHO DA VIDA


O tempo afaga tudo, mais ainda quando não se recorda que já antes se passara por aí, numa repetição de intenções e deixar caír. Não se aprende porque não se lembra, não se evita porque se acredita na inovação. Aos poucos guardei a imagem dela para os dias tristes e solitários e permiti-me sentir por mim outras manifestações no gostar de outras mulheres. Umas mais, outras apenas um sorriso. O apelo do regresso a casa pendía tanto quanto a descoberta dos mundos, fossem lugares, fossem gente. É neste ponto que achamos que as comparações deixam de fazer sentido. Elas hão-de chegar e ter o relevo que ganharam por mérito próprio: Chamamos-lhes experiência de vida, amadurecimento. E nesse ponto até se exclama que nada mais surpreende, somos adultos, vividos. Só não sabía que era feito de repetições, de portas que se abrem para outras portas. Porque só agora é que ganhei a chave e sei como usá-la.

DE DEGRAU EM DEGRAU



Aos vinte temos uma capacidade monumental de achar que onde pisamos é nosso. Porém, não me detinha nos sitios onde passava quase de raspão. Havía uma permanente ansiedade, o meu nome a ser gritado ao longe a chamar-me para onde não estava. Era quase feliz ao chegar, inquietava-me rápido a partida. Agora e só agora, compreendo que as experiências passadas me avisavam e de quando em vez surgíam clarões na minha memória e não os entendendo, escrevía sobre eles, apelidava-os de ficção, inspiração, arte. Larguei a poética, dediquei-me fervorosamente a um diário de viagens e de pessoas. O narrador era o meu amigo imaginário. Era assim que se conquistava o crescimento, com dores nos pés, com saudades na alma, com perguntas mudas como estaría ela, que faría ela naquele instante em que eu de mão na água agitava o mar em círculos pequenos, esperançado que ela os visse no sinuoso do rio do outro lado do mundo.

PARTIR


Fiz-me ao mundo. Ou talvez o mundo tivesse algures o coração que eu deixava para trás, para outro e também o outro que de mim se descolava como uma pele morta. Por agora não quería saber de palavras, de poemas e nem mesmo do meu amigo imaginário. Eu era demasiado novo para saber que o passado não se larga e guarda para quando apetecer voltarmos a ele. Outros apelos, outros sonhos chamavam pela recordação do que eu desconhecía ser coisa já vivida e ingénuo enganava-me na partida pelo achamento de respostas àquilo que era. Partía de um amor perdido, de mim e das perguntas que não conseguía suster. À despedida o cão olhou-me, pareceu-me vê-lo chorar.

A TRISTEZA



Naquele dia ruiu tudo, o meu mundo despedaçou-se até ao pó, as letras, as emoções, até mesmo o laço da amizade, tudo se desfez. A minha princesa e o meu maior amigo uníam-se para além do nosso triângulo, beijavam-se e prometíam em juras solenes o que o homem não pode desatar. Olhei-a e quase tive a coragem de lhe pedir para não ir para outro, olhei-o e vi como era ser feliz.Naquele dia experimentei na boca um gosto que me parecía já conhecer, e no entanto, perguntava-me de onde, que veneno igual podería ter o mesmo paladar inesquecível para o recordar tão fortemente. Sinto-o. Sinto-o agora e aqui, tão fortemente condimentado. Chama-se tristeza e sei tão bem ao que sabe. Porque só agora tenho a capacidade de saber que devería ter feito a minha vida, nesse mesmo dia, de outra forma e tudo sería diferente no seu replicar.

AS PALAVRAS QUE NÃO SE CONTAM


A timidez obrigava-me a esconder as palavras escritas, os poemas arrojados pelos amores que falhados na imaginação ganhavam o dinamismo que a minha vida morna parecía não possuír. As raparigas vinham e íam, aquela porém, a minha princesa mantinha o estatuto de amiga especial e não ía além disso. Com o meu outro amigo formávamos um trio, confiavamo-nos como a nós mesmos, mas eu, profundamente apaixonado, escondía deles o que me atormentava e enchía de felicidade. Era nesses pontos extremados que melhor escrevía, uma produção desenfreada pelas emoções que durante o dia calcava fundo e no papel era tudo tão mais fácil. Eu formulava as perguntas e fornecía as respostas. Como se as soubesse desde sempre, como se algo na minha mente as revelasse limpídas. Mas nesse tempo eu não podería saber o que já sabía, não é?

BORBULHAS


Não fui diferente de qualquer outro adolescente. Tive crises existenciais, sonhos molhados, borbulhas e alguma rebeldia. Mas esta era um mar interior, as perguntas continuavam a fazer-me comichão por dentro. Descobri o feminino, apaixonei-me por esse universo misterioso em que a carne parece consumir-nos como idéia única e interessante. Fora isso a dúvida constante: Que quería eu para a minha vida? Sentía-me liberto com o meu amigo imaginário, tinha uma confiança plena no meu amigo verdadeiro, e a Princesa parecía tão mais bela quanto mais inacessível aos meus desejos de rapaz. Inábil para lidar com este crescer fermentado de outras vidas, encontrei algum sossego na escrita. Encontrei-me e soube o que quería ser quando fosse homem feito.

A PRINCESA


Pouco tempo depois ela apareceu na minha vida, traçou o meu caminho, fez-me descobrir a tranquilidade para o desconforto de tantas perguntas. Por essa altura teríamos uns dez anos... Se é que podemos medir o tempo dessa forma, naqueles dias assim o julgava, assim sentía tudo lento e moroso. Demorava para crescer e tornar-me homem para beijar aquela menina, demorava para entender o que a poesia faz na boca quando se quer dizer amor. Ela era tudo o que eu não conhecía. Ou pensava desconhecer, no fundo estava guardado para este momento em que estou e vos conto sobre as chaves que abrem a porta para outras portas.

CÃO


Embora tivesse uma sede inesgotável de saber coisas, a escola aborrecía-me, achava uma perda de tempo, distraía-me com tudo e com nada e mantinha um contínuo diálogo com o meu imaginário. A timidez também não facilitava as relações e para além do meu amigo pouco falava com os outros. Fazía muitas perguntas a mim próprio, coisas sem explicação, muitas delas deixavam-me a matutar por horas, os porquês, porquê assim e não de outra forma, porquê os nomes das coisas, porquê o frio quando há medo e o calor quando se brinca. Um dia ao regressar da escola um cão seguiu-me. Olhei-o nos olhos meigos, ele esticou a pata na minha direcção. Senti que falava comigo embora não entendesse tudo o que me dizía mas sabía que precisava dele junto de mim para me ensinar, para eu ter respostas para muitas das minhas perguntas. Dava-me segurança igual à que tinha quando segurava a mão do meu pai... Senta Cão, senta, ouve o resto...

SIMPATIAS



Desconhecemos porque sentimos empatia por alguém. Simpatia. Sincronicidades. Paralelos, semelhanças. Havía no meu novo amigo com um segredo igual ao meu uma ligação que não conseguíamos descobrir de onde provinha: era tudo tão certo, tão experimentado como se fossemos nascidos do mesmo ventre. Naquele tempo estava-nos vedada a memória do que já havíamos sido e só agora eu - porque ele ainda não chegou a esta porta - sorrío por saber de onde éramos, de onde havíamos brincado juntos... Partilhámos o nosso segredo do companheiro imaginário e dos quatro fizémos uma força única e inseparável. Até ao dia de eu partir e abrir a porta para receber as chaves que abrem outras portas. Vejo-o, está cansado, mas ainda não é o seu tempo de receber as chaves. Mais um pouco, Companheiro...

EU E OS OUTROS



Tive alguma dificuldade em fazer amizades, relacionar-me, nos recreios ficava a um canto a observar os outros, a escutar os sons, as gargalhadas das brincadeiras. Em casa inventei um amigo para me acompanhar e conversar. Éramos inseparáveis. Mesmo quando não estávamos de acordo e nos zangávamos nunca fui dormir sem ter feito as pazes com ele. Sentía-me feliz por ter este segredo comigo, tão feliz que nem sabía explicá-lo e mesmo quando os meus pais me chamavam a atenção para o bizarro de se conversar com ninguém eu desistía dele. Acompanhámo-nos durante anos. E um dia descobri alguém que também tinha um segredo igual ao meu.

APRENDER


Chegou o dia de me levarem à escola. Para aprender, disseram-me. Por essa altura o que recordava eram manchas nebulosas e quando falava do que me incomodava punham-me a mão sobre a cabeça, afagavam-me o cabelo gentilmente e referíam que tinham sido sonhos, pesadelos, nada de verdadeiro. Ainda assim, duvidei. Prendía-me a cada fragmento e fazía força para me lembrar. Tudo em vão. No dia em que me levaram à escola e me sentei no meio dos meus colegas foi o dia em que perdi definitivamente a ligação com o que tinha sido. Eles já não me sorríam. O mesmo dom inato de esponja, tudo limpo de uma memória cheia que houveramos tido, prontos a receber, assim éramos. Tudo de novo, tudo analfabeto não só de letras e números mas da própria vida em si.

OLHOS ABERTOS



Recordo-me que mal tive consciência dos meus olhos abertos uma só pergunta se me colocava sobre quem era o casal que me sorría. Rápido me apercebi que seríam os meus pais, àquele tempo, perfeitos desconhecidos. Com o passar dos anos a medida das lembranças e do conhecimento que tinha trazido esvaíu-se por completo, tábua rasa de mim mesmo, tive que voltar a aprender tudo de novo. Incluíndo os que passaram a ser meus pais e que amei profundamente até nos separarmos. Havía toda uma multidão que passava por mim e parecía não me reconhecer... Só uma ou outra criança me sorríam, ainda tinham memória do que havíamos sido antes.

NASCER



Cheguei despido, ensanguentado, sem memória das lembranças. Chorei, doeu-me romper a barreira do outro lado para este sem poder trazer o que já sabía. À medida que fui transpondo estádios até alcançar o regresso e fui perdendo no caminho tudo o que conseguira aprender na vida que deixara para trás, uma sensação de estar só apossou-se do meu corpo. Na mente, nada.
Foi tudo tão súbito... Largar o que conhecera numa vida para poder deitar mãos a outra, a esta.
No agora, a que já deixo de novo.

HOMO


Ficou determinado que nascería homem. Marcado, para me recordar. Sem o saber. De quando em vez um estranho formigueiro adormecería o tempo real e eu tería memórias do que não havería vivido. Chamar-lhe-ía sonhos, doutras vezes pesadelos, até invenções da mente. Escrevería sobre tudo e sobre nada e sentiría alívio. Nesses dias eu não sabía que já havía sido o que não era no presente e que a descoberta de todas as vidas só me sería revelada depois que entrasse aqui. Aqui é onde estou. De onde hei-de fazer a viagem. Mas antes terei de passar as chaves a quem me vier a seguir. E que nascerá homo como eu e marcado como eu.

CONTAR



Tempo finito. Tempo de contar a minha aventura. Quando fechar a porta a cor abrandará, lentamente, a profusão dará lugar ao vazio e eu deixarei de ser. Conto a minha história, a minha estadia. Foi agradável, gostei de ter estado cá. Ainda em flor o que senti... Sinto. Breve, entregarei as chaves de todas as portas que dão para portas.

SEBENTA


Deixo os livros conforme os encontrei e como os há-de achar quem vier a seguir e sempre assim ad eternum. Escrevi a minha parte. É esse o peso que hei-de delegar. Ficou tudo registado, a poesia das noites e os épicos da madrugada. A quem o receber, destes pedaços de letras outras prosas reescreverão, achar-se-á único e original. Eu nada direi, nada me contaram quando foi a minha vez. Outros verbos para a sebenta da vida.

AMOR&PAIXÕES


Pleno. Um fogo ardido e espevitado. Na morrinha encontrei o calor saboroso da contemplação, platónico amor, descanso entre lençóis sangrando paixões. Ao amor, não um, mas aqueles que me consagraram homem. Sinto na boca o paladar ora refinado ora cru da pele, das mãos recebendo segredos no acto primeiro da vida. Comi amor, tanto amor. Por isso seguirei alimentado, a viagem é longa.

FORTUNA



Tive uma casa, um mar, sol, direito a todas as estações rasgadas entre janelas que deixei abertas para me embeber. Fui casa e ela foi o meu reino. Criei raízes e mantive-as frescas para agora levar do que restou, sementes bravas que espalho no universo da minha memória. Ganham novo terreno, posso recordar, lembro-me de tudo. Tenho sorte, nada esqueci do que já não é meu.

REFRESCAR


O que a medida do tempo tem de bom é que no avanço das rugas e do peso dos passos rejuvenece a lembrança do já vivido. Tudo se pode repetir, filtrado pelas luzes que distanciam a dor aguda do momento. Sento-me. Assisto, assisto-me. O meu desejo é comando e posso parar, saltar, andar ao contrário aquilo que mais aprouver. Não evito a saudade, não desperdiço o sofrer, refresco-me neles, será também bagagem levada quando partir.

ESTOU VELHO



Estou velho, pesam-me os séculos do homem.Um dia vou ter de ir e até lá a decisão.A quem entregar tudo isto, fiel depositário de mil chaves que abrem portas para outras portas.Assusta...O corajoso perderá tudo pois desvendará.Estou velho. Porém não sábio, apenas mais sabido, destemido.O dia chegará e eu terei de escolher.