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CURATIVOS




Naquele tempo partir, ficar eram situações tão definidas e claras quanto o sol nascer todos os dias para suceder ao reinado das noites. Essa dor funda que ardía no peito não era semelhante a nenhuma outra. Talvez por isso, tentemos arrepiar o inevitável recorrendo a todas as lembranças que nos enchem a essência do que somos. A alma? Ou as almas do que se é? Dei comigo a espevitar recordações que julgara não ter, a descobrir significados para o que me parecera abstracto e achando-lhes conforto, entreguei a minha companhia a uma solidão nova, cheia de emoções, de cheiros e paladares. O peito que queimava aliviava-se quando partilhado na escrita, nas palavras trocadas com a minha mãe, no tocar os objectos que me havíam sido entregues na herança, na reencarnação de meu pai na figura do meu amigo invisivel e inventado que trouxera da infância e que houvera guardado no armário por vergonha. O que arde não cura, mas ajuda a suportar dores.

DESPEDIDAS


O nosso sofrer é sempre maior que o dos outros porque é do tamanho de nós mesmos. Mas à custa de nos guardarmos nessa capa que nos vai envolvendo em camadas que enrijecem, perdemos a visão e uma dormência tolda-nos os sentidos e acabamos por fabricar da nossa seiva um casulo que nos asfixia. Sem saber de mim perdi a medida dos que me estavam próximos e foi súbita e tardiamente que entendi que o meu pai partía. Não se recupera o que já passou mas recuperamos de nós as medidas do nosso sofrer e o que parecía desesperado tornou-se uma vaidade que passei a esconder. Tomei a mão daquele homem entre as minhas como ele fizera tantas vezes comigo, senti-o ir, vi-lhe nos olhos os mesmos olhos do cão quando eu havía partido anos antes. Não tive a fortuna de aqui, onde agora estou, me encontrar com ele. Ele chegou no seu tempo e entregou a chave das portas para a porta que escolheu. Mas o cão falou-me dele e disse-me que ía feliz no voltar.

(DES)AMORES



Não me orgulho deste pedaço da minha vida. Maltratei o amor, os que me queríam bem, prostituí o meu coração sempre que poude e sempre a tentar achar-lhe novas maneiras na humilhação de o ignorar. Nada me satisfazía, nada era bom ou suficientemente mau para eu lhe notar a diferença do que sentía e despertar desta indignidade. Achei-me imortal por já nada me tocar. Achei-me imortal porque escrevía furiosamente sobre emoções que não sentía. Tornei-me o rato do meu próprio labirinto, observador da minha insanidade. Subitamente...

ARA


Os grandes projectos de vida não são os que se realizam. Os encantos desses rasgos de desejo encontram-se no permanente sonho em que se vai acrescentando um pormenor, retirando excessos, aprimorando detalhes. Esse é o motor mais bem lubrificado da essência da vida. Por isso, quando procurei o que deixara uns quantos anos atrás, no amor que tão bem guardara para oferecer àquela menina que se tornara mulher-mãe, soube não com as certezas que agora tenho, mas as daquele tempo, que o meu projecto era manter lembrado o que fora e não o tentar consumar. Caí numa tristeza profunda pela descoberta e amaldiçoei a ela, a mim, ao meu grande amigo que se tornara o seu companheiro, a todas as minhas hesitações e silêncios, a todas as vezes em que lhe quis confessar e não fui capaz, à minha partida, ao meu regresso, a minha infelicidade tão grandiosa e ao mesmo tempo tão bela. Mas deixei que as lágrimas se tornassem lentes de aumentar para ver tudo com mais limpidez e concluí que o meu sonho era ter tido um amor tão enorme que extravazou num altar que fiz à recordação daquela menina.

O PASSADO NO FUTURO




Não só onde agora estou a porta dá para outras portas. Também naquele tempo se ensaia o que virá depois; apenas não o sabemos e estranhamos. E entranhamos na memória como se um destino se cozesse à nossa existência levando-nos a direito pelo sinuoso das linhas da coincidência. Acertei os meus passos pelas minhas raízes e se acalmei a minha vida, uma outra, independente da razão se descompassou. Ao reencontrar a poética trouxe à luz do dia tudo o que sentira por aquela menina que deixara no passado e o coração, maltrapilho da memória e das juras, mendigou a emoção do que sentira. Faltava-me o amor para ter casa. Mas não um qualquer de um outro novo, aquele, sim aquele que eu tivera escondido e que agora decidido quería gritar ao universo. Mas as portas por vezes acertam-nos no rosto... especialmente as que fechámos no passado.

MUDANÇAS




A saturação do olhar critico foi a alavanca para a mudança. Corporeamente. A do sentir há muito se havía deslocado para uma caverna, amachucada pelo escuro do subconsciente anestesiado pela rotina e pelo comezinho redutor do ser humano. Romper amarras, diría o homem do mar, mas as minhas rasgadas pelo peso e força da embarcação arrastaram a âncora para um fundo lodoso que não prendía. A minha casa nova, independente, eu senhor de mim no comando da minha vida não tinha mão na minha insegurança e constante angústia da pergunta: De que devo eu lembrar que não recordo? Ao arrumar caixas no meu novo castelo achei as velhas poesias da adolescência e tudo se aquietou a meu redor.

COBARDIAS


A insustentabilidade da carne da vida é um beco. Por mais poético que se seja é preciso o vil metal para se sobreviver e para criar espaço para as coisas que de facto se gosta. Apertado contra esta parede foi inevitável tornar-me trabalhador assalariado e contrafeito. A minha escrita assemelhou-se muito a uma cruz carregada, pouco tempo para a fábrica dos sonhos e quanto mais independência ganhava mais me prostituía ao adiamento do que realmente gostava de fazer, uma permanente desculpa para a falta de coragem. De quando em vez, rasgos de outras memórias, iluminações que me deixavam a tremer pela faísca de não saber o que fazer-lhes. É duro sabermos o que não conseguimos recordar.